Tempo de Balanço

Por: Vittorio Corinaldi 03/05/2023

     Nasci em Milão, Itália, em 1931. Nesse ano, e desde 1922, vigorava na Itália o regime fascista de Benito Mussolini. O termo que define ainda hoje regimes autoritários e ditatoriais é uma contribuição etimológica italiana à cultura política contemporânea, originando-se no símbolo romano do feixe (fascio) que aquele regime adotou como distintivo.

     Ao chegar aos 6 anos de idade fui inscrito numa escola estatal. A rotina escolar, conduzida por uma professora de quem até hoje lembro o nome e a fisionomia, incluía como quotidiano ato inicial a saudação com braço estendido para as imagens do Rei e do Duce, que do alto da parede dianteira e ao lado do infalível crucifixo, olhavam de cima para os jovens escolares. Parte da praxe era também a filiação automática e obrigatória ao movimento juvenil fascista: os menores eram os figli della lupa (filhos da loba, outro símbolo que o fascismo adotou e que pretendia reviver as glórias dos tempos do Império Romano: a figura de Rômulo e Remo, os meninos amamentados por uma loba, e que se tornaram os fundadores de Roma). Os maiores chamavam-se Balilla e as meninas Piccole Italiane, antes de atingirem respectivamente os graus mais adultos de Avanguardista e Giovane Italiane.

     Como todos meus colegas de classe, enverguei orgulhosamente o uniforme da camisa preta, inocentemente ignorante da verdadeira natureza e da opinião negativa de meus pais sobre o regime e suas bravatas. Esta experiência, porém, durou pouco: como judeu fui excluído da escola estatal e do movimento juvenil, em consequência das “Leis Raciais” – a legislação antissemita de 1938 que igualmente veio proibir a presença de judeus em instituições acadêmicas (como alunos ou como professores) ou em posições de dirigência em companhias estatais, paraestatais ou simplesmente influentes na economia (que foi o caso de meu pai). Também a fiel doméstica que ajudava minha mãe nos trabalhos da casa, bem como a pajem contratada para assisti-la nos cuidados de meu irmão recém-nascido, tiveram que ser despedidas.

     O segundo ano primário cursei na Escola Judaica de Milão, e foi o início de meu conhecimento concreto com a ditadura. Paralelamente, meu pai (felizmente realista quanto às perspectivas para o futuro na Itália) se pôs à procura de uma solução para emigrar, a qual se concluiu com a partida para o Brasil em 1o. de junho de 1939.

     Se a nova vida foi um alívio de libertação do ponto de vista da discriminação antissemita, certamente não o foi quanto à abertura para um regime genuinamente democrático: o Estado Novo de Getúlio Vargas manifestava então evidentes simpatias pelos regimes autoritários da Europa. Seu inevitável declínio após o resultado da 2a. Guerra Mundial, e a fermentação política que o acompanhou, não se traduziram numa realidade de plena democracia, e revelaram as tendências para populismo e corrupção que se tornaram uma constante na política brasileira e de outros países sul-americanos.

     Para mim e para tantos jovens judeus de minha geração, aqueles anos foram os que levaram ao Sionismo e ao Dror. As solicitações práticas e ideológicas a que nós nos abrimos eram tão intensas e envolventes, que desviaram nossa atenção e interesse dos desenvolvimentos locais para os acontecimentos em Israel e no mundo judaico, e para o Kibutz ao qual aspirávamos nos encaminhar.

     Cheguei em Israel em janeiro de 1956. O país ainda se debatia com as grandes dificuldades que seguiram o nascimento do Estado, e a imigração (aliá) significava uma consciente diminuição no nível de vida.  Entretanto, guardo dos primeiros anos em Israel uma lembrança extremamente gratificante, da súbita “descoberta” de uma sociedade realmente democrática, esclarecida e aberta, a despeito das graves limitações materiais do momento. Pela primeira vez senti-me perfeitamente à vontade e percebi que a austeridade das condições não impedia, antes encorajava, relações humanas francas, desinteressadas e diretas. As pessoas não ostentavam falsa aparência, e a modéstia do ambiente, dos costumes e até da vestimenta correspondiam a minha natureza avessa aos gestos vistosos e às atitudes pretensiosas.

   Líderes políticos eram perfeitamente abordáveis sem barreiras, e não exigiam para si quaisquer regalias. Postos de responsabilidade nas instituições públicas ou no poder judiciário eram ocupados sem arrogância por personalidades de alto prestígio e autoridade profissional, herdados em geral da experiência europeia, e estabeleceram uma tradição de seriedade que se manteve até à presente crise (que será objeto de comentário mais adiante), exercendo suas funções apoiados nas estruturas modestas e precárias que podiam então lhes ser postos à disposição.

     Igual ordem de considerações se aplica ao exército: organismo vital e de presença preponderante, assentado numa disciplina hierárquica simples e amistosa, decorrente da natureza de sua formação: que diferença da imagem cheia de retórica ufanista militar que trazíamos em nossos conceitos dos países de origem!

participantes do Machon lemadrichim com Ben Gurion e, 1951

        Acima de tudo, sentia-se por toda parte a importante presença das estruturas criadas pelo movimento obreiro, que foram a base social e econômica sobre a qual foi possível, com o fim do Mandato Britânico, erguer um país com instituições definidas: a CGT (Histadrut), com indústrias, sistema de saúde, rede de transportes e cooperativas de consumo. E dentro deste quadro, a excepcional criação do gênio judaico: a inédita experiência do Kibutz.

       Escritos de evocação de memórias apresentam o perigo de cair em saudosismo piegas, de pouco interesse para o leitor. Se procurei fazer uso delas, é para encontrar uma base pessoal comparativa, afim de comentar a atual situação israelense.

cartaz com lideres

     E é evidente que isto se faça com angustioso sentido de decepção, de ideais traídos, de constatação espantosa de uma tendência suicida a que uma liderança obscurantista, violenta, agressiva e ignorante vai levando o Estado e suas instituições liberais e democráticas.

     Os fatos são conhecidos, e a ofensiva contra o poder judiciário é apenas um dos aspectos da crise. Minha intenção é exprimir a frustração e o temor que se apoderam de pessoas como eu, diante do desabamento de todo o edifício primariamente ético que alicerça nossa fé sionista; diante da aberração de uma doutrina fascista crescendo no seio da renovação judaica e do povo que mais sofreu por essa doutrina. Ela vem sendo manifestada em grandes e contínuos protestos populares em defesa da Democracia, das liberdades de crença e de opinião, dos direitos humanos e respeito pelas minorias, pela igualdade e contra a coerção religiosa e o parasitismo cínico do setor ortodoxo.

   Forçoso, porém, é reconhecer a contradição que há nesse amplo movimento popular, silenciada diante da urgência de tirar o país do perigoso colapso. Me refiro a contínua ocupação dos territórios palestinos, que enquanto perdurar, fará de nossa democracia uma estrutura exclusiva para uma autodenominada “elite”, composta por genuínos fatores liberais, mas também por declarados ou ocultos portadores de ideias reacionárias e racistas. Estas obrigam a manter o exército ocupado com tarefas de policiamento, contrárias ao seu objetivo face a uma população árabe civil que também inclui elementos hostis e terroristas, (que em circunstâncias diferentes e geograficamente distantes poderíamos vê-los como elementos insurgentes contrários à opressão). Contudo, a maioria procura levar a vida civil inocuamente, e resiste aos obstáculos e dificuldades que perturbam sua existência quotidiana.

     Patrocinadores dessas dificuldades são os militantes “messiânicos” dos assentamentos, agora admitidos à mesa do governo por cálculos interesseiros de Netanyahu. Eles exigiram e receberam como condição de seu apoio, cargos de primeira importância, que eles vêm carregando com um misto de incompetência e irresponsabilidade, antepondo cegamente interesses setoriais e individuais ao bem da nação. A seu redor se move um conjunto de seguidores e lacaios que interpretam a estreita maioria obtida nas últimas eleições como concessão para destruir consensuais fundamentos da nação, promovendo ao mesmo tempo uma legislação de protecionismo personalizado de deslavada corrupção.

     Uma grotesca “corte bizantina” encabeçada por uma “rainha” ávida de luxos e caprichos e por um “príncipe” intrometido e insolente – camuflados instigadores das obscuras decisões do “monarca” – são os que procuram nos impingir como herança do luminoso edifício de justiça e liberdade que os fundadores do Estado erigiram e gerações de dedicados cidadãos cultivaram e defenderam, inspirados na Declaração da Independência. Esta é, e deverá ser em Israel o modelo de Constituição que rege o estado, até que outra – juridicamente sustentável e unanimemente reconhecida – venha a ser estabelecida. Oxalá nos seja dado presenciar um tal momento, que hoje se nos apresenta pessimistamente longínquo!

 

 

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