Há cinquenta anos, nesse dia de 23 de fevereiro , um grupo de jovens judeus de vários movimentos juvenis de São Paulo, acompanhados de amigos e familiares, reuniu-se em frente ao Colégio Hebraico Brasileiro Renascença para embarcar no ônibus que os levaria ao aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, começando o que, para muitos, seria a maior aventura de suas vidas. Eu era um desses jovens. No Rio encontraríamos outros jovens vindos de várias partes do Brasil. Alguns já eram amigos havia anos, enquanto outros mal se conheciam. Todos seguiam o mesmo sonho: passar os próximos onze meses experimentando diferentes aspectos da vida em Israel.
Cada um de nós carregava na bagagem suas próprias expectativas e esperanças, seus próprios medos e inseguranças. Para muitos, como eu, essa era a primeira saída do ninho, da nossa zona de conforto. Pelo próximo ano estaríamos livres dos controles paternos e maternos, longe da influência familiar. Esse conceito era, simultaneamente, excitante e aterrorizante. Mas tínhamos uns aos outros, e isso nos bastava. Essa seria nossa família durante todo o tempo que estivéssemos em Israel.
É lógico que cinquenta anos mais tarde minha memória de muitos acontecimentos já está um pouco nublada. Mesmo assim ainda enxergo através das nuvens e lembro de eventos que ficarão para sempre comigo. O voo do Rio para Roma pela Alitália, por exemplo. Foi a primeira vez na minha vida que entrei em um avião. Lembro do Sérgio, representante da Federação, me convidando pra ir sentar na cabine de primeira classe, sendo acordado e fazendo amizade com o Lúcio, o comissário de bordo. Lembro de ter tido uma das melhores surpresas da minha vida quando, ao desembarcarmos no aeroporto de Roma, encontrei a Cláudia Cardinale, a mulher mais bonita do cinema da época. Só mostrando a Instamatic a ela dei a entender que queria tirar uma foto com ela. Muito para meu prazer, ela aceitou. O Paulo foi o fotógrafo. O entusiasmo de passear por Roma era incrível: eu, um moleque pobre do Bom Retiro, estava visitando o Coliseu.
Daí veio a partida para Tel Aviv. Só de entrar no avião da El Al já me senti emocionado. Os anos de influencia da tnuá começando a surtir o efeito desejado. Para mim, já estávamos em solo israelense. Infelizmente, o que quase ficou em solo italiano na hora da decolagem foi a massa que comi no almoço. Acho que o piloto da El Al pensou que estivesse decolando num Mirage, pois a subida foi muito brusca. Meu primeiro pavor num avião! Mas o resto do curto voo foi tranquilo. Não lembro o que aconteceu quando chegamos a Lod (pra quem esqueceu, era assim que chamava o aeroporto). Pela minha memória, chegamos direto em Haon. Fomos apresentados às nossas famílias adotivas, recebemos nossas roupas de trabalho e fomos para nossos alojamentos. Meus primeiros companheiros de moradia foram o Roni e o Paulo. Graças ao nosso querido madrich, o Guilherme, eu fui o primeiro da kvutzá a ir trabalhar. Ah, a ingrata vida do sadran avodá!
Mais uma vez minha memória falha. A cronologia do que fizemos em Israel está completamente esquecida. Lembro de eventos, mas não de quando eles aconteceram. Lembro de adorar todos os trabalhos que fiz em Haon, fosse no kerem, nas bananas, na breichat daguim (de onde tiveram que me pescar um par de vezes), nas tâmaras, pardêss, e até no chadar haochel. Aquela era a vida para mim: em contato com a natureza, rodeado de amigos, trabalhando no que gostava e comendo como um nababo sem engordar. Além de tudo, estava satisfazendo meu sonho sionista.
Nunca vou esquecer, também, a grande bebedeira de Purim, quando alguns dos banim – não vou citar nomes para proteger a identidade dos beberrões – tomaram todas as garrafas de bebidas que cada um da kvutzá ganhou, incluindo licores de tudo quanto é fruta. Se me lembro, terminou com um banho comunal no gramado no meio dos alojamentos.
Amei todos os passeios que fizemos, especialmente quando guiados pelo Yerach. Cada centímetro de Israel que eu conhecia, mais me apaixonava. Nossa viagem pelo Sinai foi uma experiência que poucos tiveram o privilégio de realizar. O Banias, Rosh Hanikrá, Yerichó, Beit Lechem e, é lógico, Jerusalém. Lá me aconteceu uma coisa interessante. Precisava comprar um casaco. Estávamos todos na cidade velha mas, naquele momento, eu estava só com a Kátia. Achei um casaco que gostei e comecei a pechinchar com o árabe dono da loja. Discutimos por alguns minutos até que ele fez a proposta final dele: ele me daria o casaco se eu convencesse a Kátia a entrar no fundo da loja com ele. Fiquei chateado porque eu gostei do casaco, mas comprei em outro lugar.
Outra experiência interessante que tive com a Kátia foi quando tivémos um período de programas eletivos. Ela e eu estávamos num moshav no sinai. Um dia fomos acompanhar um dos residentes a despejar o lixo no depósito, ela de um lado do trator e eu do outro, ambos suportados pela blindagem inferior do trator. Era necessário manter o trator na trilha, pois sempre havia o perigo de minas terem sido colocadas na área. Na volta para o moshav passamos por um outro residente que estava indo despejar seu lixo. Os dois motoristas desviaram da trilha para dar passagem ao outro. Conforme chegávamos de volta em casa, ouvimos uma explosão. Olhando em direção ao depósito de lixo vimos a fumaça preta subindo do local de onde acabáramos de sair. O motorista do trator nada sofreu, graças à blindagem, mas pedacinhos da Kátia e meus estariam espalhados no Sinai até hoje.
Também curti nossa passagem por outras experiências: tzofim, nachal, Bror Chail, etc. Mesmo a pior das atividades acabou sendo maravilhosa para mim. Quando estávamos no seminário ideológico em Jerusalém, a única coisa que eu não queria fazer era assistir as artzaot; haja saco para ficar ouvindo argentinos falar sobre Buber et al. Descobri que havia mais uma pessoa que não estava contente com aquele programa. Conversando com o André, da Chazit, decidimos aproveitar melhor os dias que ainda faltavam para acabar o seminário. Pegamos nossas mochilas e sleepings e fomos passear. Várias aventuras aconteceram, mas o principal é que durante esse passeio formamos uma profunda amizade que floresce até hoje.
Aliás, fico muito feliz em dizer que as amizades que levei comigo em 1971 voltaram comigo para o Brasil e continuam comigo até hoje. Fico mais feliz ainda em poder dizer que várias outras amizades com membros da nossa kvutzá brotaram vários anos após nosso Golden Year. Apesar da passagem desses cinquenta anos e das distâncias geográficas que nos separam, nossa kvutzá continua ligada e em contato. Isso diz muito sobre seus membros. De minha parte, o que eu digo sobre esses membros é que eu os amo, todos eles, os que ainda estão conectados e os que perderam contato, os que ainda estão por aqui e os que já foram para a próxima aventura. Quem sabe se vamos estar juntos do lado de lá?
V
Nosso grupo do Ichud Habonim era constituído por 21 chaverim:
Bahia: Kátia
Paraná: Gladis
Rio de Janeiro: Adam, Bluma, Berta, Beth, Paulo e Silvinha
Rio Grande do Sul: Gil. Harry, Jablonka, Sérgio e Solon
São Paulo: Arnaldo, Black, Blima, Carlos, Levi, Roni, Valter e Zeli
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Parabéns ao chaverim do Shnat 71′ pela amizade durante este meio século.