Elena\Helena Corinaldi – Helena Czeresnia – Ilana Tzoran
Nasci em Milano, no dia 13 de abril de 1930, primogênita dos meus pais, Margherita Polacco Corinaldi e Adalberto Corinaldi. Em 1931, nasceu meu irmão Vittorio. Em 1935, meu segundo irmão, Emanuele. Meus pais eram diplomados em universidades. Minha mãe em letras e línguas antigas (latim, grego, sânscrito). Meu pai, engenharia. Mas, eles não exerceram estas profissões, pois minha mãe se tornara dona de casa, e meu pai ocupava um cargo elevado na filial, de Milano, da Companhia de Seguros Assicurazioni Generali.
Éramos uma família burguesa de classe média, bons judeus, tradicionais e bastante liberais. Levávamos uma vida sossegada, feliz e vivíamos próximos da minha avó materna e da irmã de minha mãe. A família de meu pai vivia em Veneza e, com eles, nos encontrávamos nas festas e no verão, quando íamos passar alguns dias na praia.
A Europa encontrava-se em crise, após a Grande Guerra (1914-1918). A Itália era governada pelo partido fascista, de Benito Mussolini, e, na Alemanha, subira o partido nazista, que deu início a uma política antissemita. Após o pogrom da "Noite dos Cristais" contra os judeus em toda a Alemanha, apareceram na Itália os primeiros refugiados. Para nossa casa, veio uma moça que ajudou um pouco a mamãe, quando foram proclamadas as leis raciais por Mussolini. Os judeus foram proibidos de ter propriedades e bens, foram afastados de cargos oficiais e de suas profissões, jovens e crianças foram proibidos de frequentar escolas públicas e universidades, professores foram despedidos, donas de casa foram proibidas de manter empregados.
Nós tivemos sorte que meu pai previu o que viria a ocorrer no futuro e, em meados de junho de 1939, ele tratou de abandonar a Europa. Embarcamos do porto de Genova com destino a América do Sul, ao porto de Santos no Brasil. A meta final de nossa viagem era São Paulo.
Esta viagem deixou em mim uma profunda impressão. A despedida dos parentes que continuaram na Itália, o navio, a atividade nos portos, a passagem pelo estreito de Gibraltar, o eco da Guerra Civil na Espanha, quando não pudemos atracar no porto em Barcelona, a impressionante paisagem da Baía da Guanabara, os arranha céus do centro de São Paulo, onde passamos a primeira noite no Brasil.
Logo nos transferimos para uma pensão de judeus alemães na Avenida Angélica, onde os hóspedes eram todos refugiados como nós. Meu pai saiu imediatamente para aprender a nova língua e procurar trabalho. Vittorio e eu fomos matriculados numa escola, na proximidade. Entramos para a comunidade "yeke" e a sua sinagoga de orientação reformista do rabino Fritz Pinkuss. No ano seguinte, nos mudamos para uma casa particular na rua Gualachos. Meu pai trabalhou como avaliador de uma companhia de seguros e viajava frequentemente para lugares, onde havia infortúnios, principalmente incêndios. Vittorio e eu íamos para o grupo escolar na Avenida Paulista. Minha mãe se ocupava da casa e cuidava do Emanuel. Da rua Gualachos, passamos para a rua Urano, onde crescemos até nossos casamentos. Eu casei em 1950.
Nesses dias, tomamos conhecimento do que ocorreu na Segunda Guerra Mundial e, principalmente, da Shoá. Ela nos tocou terrivelmente. Minha avó Elena, a mãe de meu pai, seus irmãos que, como ela, estavam na Casa dos Velhos em Veneza e uma das duas irmãs de papai, Rosita, com o marido e quatro crianças foram deportadas e assassinadas em Auschwitz. O irmão de papai, Benedetto, faleceu quanto tentou abandonar o norte da Itália, sob ocupação alemã, para a região sul do país controlada pelas forças aliadas, que haviam invadido a península em julho de 1943. Em Veneza, sobraram a tia Evelina e família, os irmãos da vovó Fany e alguns amigos que tinham conseguido se esconder ou fugir dos nazistas e fascistas italianos.
Eles eram os remanescentes de uma família que havia se integrado exemplarmente na sociedade italiana, contando mesmo com algumas figuras ilustres na esfera política e acadêmica. Mas, este rico passado não lhes ajudou no momento mais trágico de suas vidas na Itália.
No Brasil, a comunidade judaica se organizou para ajudar os sobreviventes da tormenta. A juventude se uniu ao movimento sionista. Nós fomos para o DROR. Papai foi muito ativo na campanha pró Israel e se destacou na comunidade, enquanto minha mãe atuava na WIZO. Do Brasil, saiu um grupo de jovens que participaram em 1948 do curso para líderes de movimentos juvenis, organizado pela Agência Judaica (Sochnut) em Israel. Nele, se encontrava também Naftali Czeresnia, meu futuro marido. Nos casamos em novembro de 1950. Em Jundiaí, foi inaugurada pelo DROR uma fazenda de treinamento agrícola para a futura vida no kibutz. Eu estive lá alguns meses, antes do nosso casamento. Depois de casada, voltei com Naftali para a casa de meus pais até a data da aliá, em março de 1951. Embarcamos com o garin. No entanto, ao chegarmos em Genova, nos separamos do grupo para poder encontrar parentes da minha família que haviam sobrevivido a guerra. Na festa de Pessach, fizemos um seder feliz e ao mesmo tempo triste em Veneza. Eu já estava grávida mas resolvemos aproveitar nossa estadia na Itália para fazermos um pouco de turismo e fomos viajando em direção ao sul até Nápoles. No caminho, visitamos a hachshará do movimento Hechalutz. No dia 1º. de Maio, passamos por um vilarejo e lá ficamos sabendo sobre a atividade dos comunistas na Itáli,a pois havia naquele lugar uma manifestação deles. Em Roma, além das antiguidades e artes, estivemos, por exemplo, em lugares que lembravam acontecimentos mais recentes como as chamadas "Fosse Ardeatine"[1]. Também visitamos algumas localidades que abrigaram jovens judeus que sobreviveram sem suas famílias e haviam sido reunidos para fazer aliá com navios organizados pela aliá bet (imigração ilegal).
A viagem de Nápoles foi bastante animada, devido ao mar agitado, que provocou o atraso do navio na chegada à Haifa. Entramos no golfo numa sexta-feira, após a entrada do shabat e tivemos que permanecer a bordo até domingo de manhã. Quando finalmente desembarcamos e terminamos todos os tramites burocráticos, nos deram carteira de novo imigrante (teudat olé), número de identidade e fomos liberados para viajar a nossa meta final - kibutz Mefalsim - para o qual eram dirigidos todos os garinim do DROR oriundos da América do Sul. Viajamos algumas horas no caminhão do kibutz e, quando chegamos, já era noite. Fomos alojados numa tenda com uma cama de ferro e um caixote que servia de cadeira, mesa e armário. Não consegui ver onde estava, mas senti, durante toda a noite em que não dormi, o silêncio ao redor, mas também a tensão, devido ao farol que girava o tempo todo e também nos iluminava. Estávamos próximos da fronteira com a Faixa de Gaza e temia-se penetração de inimigos, que também vinham para roubar ou passar para a zona de Hebron. De manhã, encontramos o secretário geral (mazkir) de Mefalsim e membros do nosso garin. Soubemos que havia tensão entre os veteranos argentinos e os novos que vieram do Brasil. Os brasileiros resolveram se desligar dos argentinos e ir para outro kibutz, que seria doravante a base para outros grupos que viriam do Brasil. O garin se estabeleceu no kibutz Afikim como garin Nachal (que conjugava serviço militar e trabalho agrícola no kibutz). Os rapazes e as moças solteiras saíram imediatamente para treinamento militar. Eu e outras jovens grávidas ou mães recentes ficamos no kibutz. Em meados de agosto (1951), dei a luz a minha filha Drora. Naftali foi autorizado a me acompanhar para Tiberíades, onde se encontrava o hospital e maternidade. Foi uma longa espera, a menina só apareceu no meio da noite, sem a presença de seu pai, que apenas a conheceu na manhã seguinte. O médico apareceu depois do café da manhã e permitiu que eu fosse transferida da sala de parto para o quarto. No hospital, não havia elevador. Para subir a outro andar, foi preciso chamar dois "brutamontes", que me deitaram numa maca e assim puderam subir as escadas...
Em Afikim, Drora entrou na creche (beit hayeladim). A jardineira (metapelet) explicou quais eram minhas obrigações e direitos. Como, em 1950, houve uma epidemia do vírus da paralisia infantil em Israel, as crianças deviam ficar em quarentena. Somente mães podiam entrar nas creches e apenas no horário de amamentação. Como eu não tinha experiência alguma, aceitei tudo que me ensinaram ou exigiram de mim, mas foi difícil ver meus pais, que chegaram do Brasil especialmente para conhecer sua primeira neta, sem poder abraçá-la, apenas vê-la pela janela. Hoje, passados tantos anos, posso dizer que a menina foi bem criada, é saudável e bonita, mas do ponto de vista sentimental, aquele período não foi fácil para mim e nem para ela...
Naftali era tratorista. Eu trabalhava na cozinha. Festejamos o primeiro aniversário da Drora ainda em Afikim, mas, logo em seguida, passamos a morar em Bror Chail, o lugar definitivo que o garin escolheu entre as várias propostas que lhe fez o movimento kibutziano. Como Mefalsim, também Bror Chail se encontra na zona fronteiriça com a Faixa de Gaza. Quando nós chegamos, já havia no lugar um grupo de jovens egípcios, membros do Hechalutz, mas urgia que viessem novos membros ao lugar. Era época de semeio e Naftali foi dos primeiros brasileiros que trabalhava longas jornadas no arado do largo vale de terras, antes da chegada das primeiras chuvas. Morávamos em barracas de madeira (tzrifim). Não havia instalações sanitárias com chuveiros e, para nos lavarmos, íamos ao lavatório comum, uma barraca feita de alumínio separada para homens e mulheres. Ao lado da lavanderia, havia um tanque de água quente que também fornecia água para o chuveiro.
Na cozinha, tudo era bastante primitivo. Cozinhávamos na base de fogareiros a querosene (primus) e havia um único tanque com torneira. O leite vinha do curral das vacas e era sempre fresco. Outros produtos, inclusive verduras, eram trazidas uma vez por semana de caminhão. No refeitório, havia mesas com oito lugares e bancos para sentar. Se a memória não me falha, a "louça" era de alumínio e, às vezes, na mesa havia uma faca apenas para todos... Pão não faltava. Enfim, comíamos...
Em 1954, dei à luz a Yair na maternidade do hospital de Beer Sheva. Em 1956, tivemos a Guerra do Sinai. Os brasileiros que serviam nas forças da ONU vieram nos dizer adeus, antes de deixarem definitivamente a zona... Depois da guerra, resolveu-se enviar shlichim para o Brasil. Nós fomos designados e ficamos no Brasil mais de um ano. Naftali foi instrutor na hachshará. Eu fui encarregada de organizar um grupo de jovens que faria aliá nos marcos da Aliat Hanoar. Estávamos hospedados na casa dos meus pais. Meus filhos se ambientaram tão bem, que até podíamos deixá-los alguns dias com os avós nas nossas viagens a trabalho. Aliás, a estadia no Brasil foi uma ocasião para aprofundar as relações familiares – avós, tios e primos. Yair, que recém começara a falar hebraico, passou a se expressar quase só em português. Drora, que iniciou o primário na escola judaica do Cambuci, criou uma base linguística que a serviria no futuro, pois voltaria ao Brasil como instrutora (madrichá), após terminar os estudos, antes de servir no exército. Depois, o português lhe serviu para se comunicar com quem veio a ser seu marido, Isio Vamos, brasileiro que esteve em visita familiar, e casaram em 1981.
Ao retornarmos da nossa shlichut, tivemos que dar maior atenção as crianças, que deviam integrar-se na educação comunitária coletiva. Drora se readaptou relativamente fácil, mas Yair, que não mais falava hebraico e não estava acostumado ao que para ele era tudo novidade, me obrigou a passar alguns dias com ele no jardim de infância e nas noites, quando eu ou Naftali dormíamos na casa das crianças. O panorama ao nosso redor demonstrava o quanto o kibutz havia progredido. Havia mais verde, mais construções, melhores condições de vida, comparado com as que conhecíamos, antes da nossa viagem e novos membros. Naftali voltou a trabalhar no cultivo extensivo (falcha) e depois foi designado para tesoureiro do kibutz e, em seguida, da indústria DECO. Eu fui metapelet de um grupo, cuja educação acompanhei dos três aos 13 anos. Depois, saí para preencher uma função na sede central do departamento de educação do movimento kibutziano em Tel Aviv. Nesta função, viajava com outras companheiras para visitar kibutzim por todo o país. Tínhamos o luxo de poder ter um motorista a nossa disposição. Tanto assim, que eu nunca pensei em aprender a dirigir. Isto ocorreu anos mais tarde, quando abandonamos o kibutz, mas eu já estava beirando meus 70 anos e cheguei logo a conclusão que não devia enfrentar o trânsito.
Em 1962, nasceu Eliezer. Em 1967, estourou a Guerra dos Seis Dias que, dela, derivou a euforia do 'grande Israel'. Fomos visitar Jerusalém, a faixa de Gaza e o deserto do Sinai. Pedi ao kibutz para estudar e, durante três anos, estive no Seminário em Oranim. Passava lá durante os dias da semana e voltava para o kibutz nos finais de semana. Nesta época, já havia a escola regional dos kibutzim do Shaar Haneguev. Drora e Yair estudavam lá durante o dia, retornavam de tarde para casa, junto ao Eliezer e o pai, que foi ótimo durante minha ausência.
Quando concluí o curso, me tornei professora do primário e participei da experiência educativa de classes abertas. Trabalhávamos, três professoras juntas numa sala de aula, em que os alunos eram divididos em três grupos, para tratar de assuntos sob diversos aspectos. Por exemplo, se a matéria era o dilúvio conforme descrito na bíblia, eles deviam desenhar ou fazer um modelo da arca de Noé. A terceira professora ensinava aritmética, menos ligado ao assunto principal. Preparávamos muitas atividades com propostas educativas independentes, que visavam ocupar cada aluno e quase não havia problemas de disciplina. Este sistema exigia dos professores mais horas de preparo. Em compensação, nos dava muita satisfação. Infelizmente, o ministério da educação não concordou em dar meios para continuar e, assim, retornamos ao sistema de aulas frontais, que exigia orçamentos menores. Passei, então, a trabalhar com adultos. Era o início do que hoje é a Michlelet Haneguev Sapir. Centralizei as atividades de artes, que compreendiam cerâmica, escultura, desenho, trabalhos manuais etc.
A maior parte da minha vida está ligada a Shaar Haneguev, mas de lá também acabamos por sair. Nos anos 80', começou um movimento de mães insatisfeitas com a educação coletiva, que decidiram não mais enviar seus filhos às casas das crianças. Houve uma época de verdadeiro caos, até que a situação chegou ao ponto em que todas as crianças passaram a dormir nas casas dos pais. Isto não apenas modificou o sistema de trabalho, mas incorreu na necessidade de ampliar as moradias familiares. A privatização se fez sentir ao nível econômico do kibutz como um todo e nas famílias em particular. Vieram à tona diferenças econômicas entre os chaverim que trabalhavam fora do kibutz, que tinham pais que lhes enviavam dinheiro, que tinham funções que lhes permitia ter automóvel para trabalhar e aproveitavam-no para usufruto próprio e por aí afora. Todos estes eram privilegiados em relação aos outros. Conclusão, o kibutz como havia sido idealizado estava morrendo, e o ambiente social ficava cada vez mais tenso.
Meus pais, após a aliá de Vittorio e Emanuel, viveram em Veneza. Depois, por bons anos, estavam em Bror Chail, onde vieram a falecer. Eles estão enterrados no cemitério do kibutz. Eles nos deixaram uma herança suficiente para poder encontrar uma solução fora do kibutz. Nossos filhos já tinham abandonado o kibutz, estavam casados e instalados fora. Drora e Isio, com seus três filhos moravam em Achvá, um centro comunitário ligado a prefeitura de Beer Tuvia; Yair e Sema viviam fora do kibutz, pois Sema não queria criar seus filhos no sistema educativo coletivo e foram viver em Nehorá, Kiriat Gat e Nechusha. Eli procurou se aproximar ao centro do país e morava em Ness Tziona. Ao lado de Achvá, construíram um setor destinado aos aposentados dos moshavim de Beer Tuvia. Drora insistiu na possibilidade de morarmos próximo a ela neste bairro. E assim foi. Em dezembro de 1999, chegamos a Neot Achvá, o último destino de Naftali, que faleceu em 2017.
Eu continuo a viver em Neot Achvá, e participo desde que cheguei há mais de vinte anos, das atividades e ajudo no que posso. Tenho escrito regularmente no boletim que sai mensalmente o "Meiasdon".
Meus anos de vida não são poucos e começam a pesar, mesmo assim estou bem e espero ter suficiente saúde e lucidez para gozar da família especial que...me sucede.
Setembro 2020
[1] Local com antigas catacumbas romanas onde os nazistas massacraram centenas de civis italianos em represália a um atentado da resistência anti-fascista italiana em Roma. Neste local foi instalado um monumento comemorativo.